– Vcs vão achar muito absurdo esta nova postagem assim tão próxima da última? Bom, em caso positivo, não estarão sozinhos. Alguns dos meus principais exemplos na vida foram meus professores. Alguns melhores, outros piores, e quem sou eu para julgar, mas sempre figuras que de algum modo tiveram minha atenção e inspiração. Talvez tanta, me fazendo herdar uma profissão na qual eu me completo.
Estava hoje numa agência bancária com a minha mãe. Coisas básicas, começando a resolver os primeiros problemas do ano. Fui ao atendimento pedir uma segunda via de cartão e minha mãe precisava pagar uma conta. Consegui colocá-la sentada e ficar ao seu lado de pé, na fila, aguardando o atendente.
O banco começa a lotar. Outras pessoas sentadas e algumas ficando em pé. Minha mãe me cochicha alguma coisa:
– Aquela não é aquela que foi sua professora na escola tal?
– Aquela? Quem, a tia Ana Claúdia?!
Para a pessoa que minha mãe estava apontando, eu só poderia me remeter a “tia Ana Cláudia””, embora em muito pouco, apenas nos detalhes mais óbvios, aquela figura ainda lembrasse a pessoa que eu tinha em minha lembrança. Era uma senhora bastante deixada, com um corpo já sem a sua melhor silhueta, em um vestido longo de alcinhas bastante simples. Os cabelos eram curtos de um castanho claro acinzentado bem sólido. Usava óculos, que deviam ser para perto. Nenhum sinal de vaidade foi detectado. O rosto era bastante envelhecido, mas uma observação mais cuidadosa do conjunto poderia convencer que já pertenceu há algumas décadas, ou em outra época, a uma bela mulher.
Mesmo assim, eu na minha ignorância juvenil, de quem ainda não sentiu na própria pele e na dos amigos de infância o peso do tempo, não conseguia acreditar. Não poderia ser a tia Ana Cláudia. Mais fácil se fosse alguma tia dela! Olhava e falava pra minha mãe que não era. Minha mãe falava pra ir lá perguntar quando fosse embora e eu dizia que não iria porque não estava a fim de confundir pessoas.
Finalmente, consegui ser atendida. Problema resolvido muito rápido. Minha mãe ainda tinha que ficar mais tempo no banco e eu tinha outras coisas para resolver fora dali. Nos despedimos e ela ainda insistiu pedindo que falasse com ela quando passasse por ali. E eu, descrente, falei apenas tááá boooommmm….
Caminhei para a porta. Aquela interrogação em forma humana estava ali bem ao lado, teria que passar por ela. Conforme caminhava nos aproximávamos e resolvi encarar, nos olhamos. Vontade de desviar o olhar, mas continuei, ela também, tirando os óculos. Diante da sua não desistência, quando colei perguntei, quase como quem fala sozinho:
– Tia Ana Cláudia?
Ela me respondeu como em seus melhores momentos no primário, virando apenas o rosto:
– Oi meu amor
Um mix de não tô entendendo que prazer é esse com que vontade ficar aqui e saber toda a sua vida quase se apossou de mim. Mas diante de um notável, porém não óbvio constrangimento dela, tive que me ater a um tudo bem?/ Tudo! Nossa, o que vc está fazendo?/ Hoje em dia eu também sou professora/ É mesmo?! (risos externos e com certeza internos também)/Ah! Eu já me aposentei!/ Nossa, esse é o meu sonho rs !/ Ah, se não mexerem nas leis de aposentadoria daqui a pouquinho vc chega lá/ Nossa que bom encontrá-la! Fiquei muito feliz mesmo/ Eu também fiquei/ Então tenho que ir… Tchau, tia Ana Claudia!
Só a vi olhando pra cima repetindo “Tia Ana Cláudia”, como quem acha muito absurdo ser chamado assim ainda. Uma graça. Uma sensação que deve ser mto legal para ela :)
Saí do banco bastante aérea com a situação.
Aquela era uma mulher que eu até esperava encontrar. Mas não naquela forma. A tia Ana Cláudia para mim era um modelo da mulher que eu gostaria de ser um dia, do alto da minha incompleta década de vida, como aluna do primário. A jovem tia Ana Cláudia, que na época nos dizia que tinha 21 anos de idade, respondia nas nossas entrevistas que eu e, claro, outras alunas admiradoras faziamos, que tinha um noivo e iria se casar aos 24 anos. Tinha um corpo perfeito para nossos olhares fixos e uma postura disciplinadora. Porém, era tão linda que chegava a ser gostoso intimidar-se com seu olhar. Tinha um rosto levemente quadrado que conferia uma elegância e seriedade muito distante, mas que me fazia fantasiar seus segredos quando sorria. Cabelos compridos, lisos, finos, louro escuros (quase castanhos) e com pontas aloiradas, numa época em que não existiam mechas californianas. Quando sobrava tempo ao final da aula, nunca tinha brincadeira: era cópia de tabuada. E sempre tínhamos cópias para casa. Era impressionante o poder daquela mulher há cerca de duas décadas atrás (alguém ainda achava que a autora deste blog ainda fosse uma adolescente?) sobre um batalhão de crianças recém saídas da classe de alfabetização, nos primeiros anos do primário. Ela nos dispensava no pátio da escola e se juntava a outras professoras em outra área, onde conversava e fumava, como uma dessas mulheres totalmente independentes. E, posso falar por mim, foi a primeira professora que admirei. Uma admiração distanciada, bem diferente da pré-colegial. E provavelmente a primeira admiração de todas que viriam posteriormente pelos diversos professores que viria a ter na vida. Na época, minha mãe estava grávida do meu irmão mais novo e pediu que eu desse o nome se fosse menina ou menino. Eu não só não aceitava a possibilidade de ser menino, como também já escrevia o nome da “futura bebê”: Ana Cláudia.
Hoje, a mulher que vi, já não era mais essa jovem, claro. Porém senti que a incomodava a inevitável comparação que obviamente eu faria entre passado e presente. A elegância e altivez se perderam em algum momento que desconheço. E percebi que o corpo inteiro não se voltou para conversar melhor comigo por isso. As mãos eram levadas a boca enquanto ela falava porque os dentes já estava em um estado provavelmente bem conhecido de quem fumou muito por muitas décadas. E ela os escondia.
O tempo passa, claro. Talvez um dia meus alunos que me elogiam e dizem que sou linda me encontrem na rua e não me reconheçam pelos mesmos motivos. Não estou aqui também para condená-la por tudo o que houve em sua vida e eu claramente desconheço.
O motivo disso tudo foi revisitar um momento tão bom da minha vida, em que tantas emoções e sentimentos foram provocados por tal pessoa e sentir, sem menos emoção, como é bom estar aqui sendo testemunha da severidade (inexorabilidade, em todas os sentidos da palavra) do tempo e poder ter esses minutos de uma tarde vendo isso ser aplicado da forma mais implacável, além do que eu poderia imaginar.
E pensar que, se eu fui ao dicionário pesquisar sobre a palavra “inexorável” é porque me lembro, desde os tempos das aulas da tia Ana Cláudia, das explicações de como usar aquelas páginas.
“Sinhá Tereza tem mania de limpeza. Esfrega que esfrega o chão com muita água e sabão”, primeiro trecho de A limpeza de Tereza de Sylvia Orthof. Lido nas aulas da tia Ana Cláudia para fazer a prova do livro.
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